sábado, 19 de outubro de 2013

Histórias da Bacia do Una: o Cururu Verde

A meio caminho entre a casa de meus pais e a casa de meus avós a Ponte do Galo se fez presente em minha infância como um ponto de passagem obrigatório para quem se locomovia através do bairro da Sacramenta. Atravessar o Canal do Galo significava que estávamos mais perto ou nos afastando cada vez mais do centro da cidade. Era nesse espaço liminar que surgia envolto pela atmosfera noturna o Cururu Verde.

Contava meu pai que a Ponte do Galo, depois de certa hora da noite, era um lugar perigoso. Fazia parte da fauna local o bandido Cururu Verde, cuja alcunha que fazia referência à espécie Rhinella marina, também conhecida como Sapo-boi ou Sapo-cururu. Anfíbio, o cururu é o habitante das margens fluviais e dos pântanos. Marginal, marginalizado como a população que vivia nos terrenos pantanosos da baixada que rodeava a Ponte e o Canal do Galo. Vivendo na umidade e na lama das profundezas da Bacia do Una. Meu pai falava sobre um personagem do presente ou reproduzia o que haviam lhe contado quando ele era criança?

Ao passarem devagar e tarde da noite pela estreita Ponte do Galo, os carros tornavam-se vulneráveis ao ataque do famigerado Cururu Verde. Este pedia pedágio para quem quisesse seguir adiante. Não roubava, pedia pedágio. Exercia o poder que lhe cabia sobre o seu território diante dos habitantes das áreas secas e sólidas que atravessavam a Bacia do Una de automóvel. A peculiaridade do Cururu Verde estava na punição que aplicava aos que não tivessem dinheiro ou se recusassem a lhe pagar uma boa quantia: suas vítimas eram arremessadas para dentro do Canal do Galo. Não eram feridas ou levadas à morte como talvez fizessem os bandidos de hoje, mas sofriam a humilhação de se verem imersos no Canal do Galo, de nadarem até as margens deste curso d'água para verem suas roupas encharcadas pelas águas que recebiam os dejetos de grande parte da população de Belém. Talvez os dejetos do próprio Cururu e de sua família. Os dejetos que invadiriam as ruas se o canal transbordasse com as chuvas ou marés altas.

O Cururu Verde e seus vizinhos conheciam aquelas águas, conviviam com elas no cotidiano. Os motoristas incautos eram levados a conhecer as águas fétidas e sem vida do Canal do Galo. A cor escura da água não lhes possibilitava ver se o canal era raso ou fundo. Suas chances de sobreviver à queda no canal dependiam da sua habilidade de nadar até as margens para ali encontrar a mesma lama de onde havia saído o Cururu Verde.


Cururu Verde era o personagem que povoava a histórias de meu pai sobre a ponte pela qual sempre passávamos. O Cururu Verde era o bandido folclórico belemense, imagem caricatural da marginalidade criada pela classe média perplexa diante da progressiva pauperização da população das baixadas de Belém. O Cururu Verde era a exclusão personificada, quase um herói anônimo promovendo a redistribuição forçada de renda. Hoje, meus amigos que moram próximo ao Canal do Galo dizem nunca ter ouvido falar dele. Nem mesmo o Google, oráculo supremo da contemporaneidade, parece saber algo sobre o Cururu Verde. Teria sido simplesmente esquecido ou será que só existia na imaginação de meu pai?

Esta era a principal narrativa que ecoava em minha cabeça quando vim morar na Bacia do Una (é daqui que saem estes escritos). O Cururu Verde era apenas mais uma imagem, muito embora a principal imagem, do meu arcabouço pessoal de representações sobre o crime, a criminalidade e a periculosidade da periferia de Belém. Desde a infância fui ensinado que os canais são lugares perigosos por onde não se deve passar. A cidade é assim apresentada à criança, que aprende rapidamente a fazer parte dos jogos de proximidade e distanciamento entre as classes sociais no mundo urbano. O fato de histórias como a do Cururu Verde fazerem parte da socialização de crianças das camadas médias em Belém expressa e reforça o caráter desigual e segregador desta metrópole amazônica.

Não entendam mal, não estou condenando meu pai por ter me contado sobre o Cururu Verde. Muito pelo contrário, a história do Cururu Verde faz parte das lembranças felizes de infância em que meu pai está presente. Histórias foram feitas para serem contadas, e as narrativas ganham vida quando passadas às gerações subsequentes. Como bom contador de histórias que é, meu pai preservou a memória do Cururu Verde. E junto com o Cururu Verde emergem as imagens de uma outra Belém, de uma outra Bacia do Una. Ambas se transformaram no devir do tempo. E hoje os bandidos também são outros.


terça-feira, 8 de outubro de 2013

Em Belém, a questão do saneamento é "caso de polícia".

Manchete principal na capa do Jornal Diário do Pará desta terça-feira, o bairro Parque Verde é um dos 20 bairros de Belém que compõem a Bacia do Una. Está localizado na segunda légua patrimonial do município, já na divisa com a cidade de Ananindeua - Região Metropolitana de Belém.

A situação exposta na reportagem é mais uma do acervo de agressões e arbitrariedades da PM agindo em nome do Estado lançando mão da violência "legítima" diante de cidadãos que estão a buscar seus direitos. Uma manifestação como a dos moradores do bairro Parque Verde só pode parecer algo insólito para um poder estatal que se habituou ao clientelismo político por anos a fio e ainda não sabe lidar com a linguagem dos direitos.


Aqui cabe parafrasear as célebres palavras do presidente Washington Luís conferindo-lhes as cores regionais: em Belém, a questão do saneamento ainda é caso de polícia.


A atitude de fechar a rua impedindo a passagem dos carros como forma de reivindicar saneamento básico, pavimentação de ruas, esgoto, saúde e segurança pode ser interpretada dentro do que o antropólogo James Holston chamou de “incivilidades cotidianas”. Estas "incivilidades" remetem à tensão latente entre classes que é característica da democracia enquanto um processo que ainda se consolida lentamente no Brasil.

Se a afirmação da igualdade entre os cidadãos cria novas desigualdades, pois evidencia as relações verticais e os contrastes entre ricos e pobres que dividem os mesmos espaços na cidade mas praticam estes espaços de maneira diferenciada, então os moradores do Parque Verde recorrem à interdição da rua não apenas para reivindicar providências da prefeitura, mas para dar visibilidade a essas desigualdades escamoteadas pela afirmação da igualdade na democracia brasileira. Transparece o contraste: de um lado, as ruas do bairro sem drenagem e pavimentação; de outro (e este outro lado é bastante próximo), a grande avenida principal - agora bloqueada - por onde se movimentam os automóveis da classe média emergente de Belém.